terça-feira, 18 de março de 2008

A SÍNDROME DA PARANÓIA


Se paranóia tivesse nacionalidade, seria norte-americana. Indubitavelmente. Salvas as exceções de praxe, os vizinhos da “América de Cima” desbancam, de longe, qualquer um de nós. Primos pobres que somos, perdemos feio em matéria de paranóia. E olha que em tudo tentamos copiá-los! A explicação? Talvez não sejamos tão criativos. Talvez tenhamos imaginação ridícula e limitada. Talvez só usemos, mesmo, dez por cento da nossa cabeça animal. Talvez, talvez, talvez. O certo é que, neste particular, estamos a Anos-luz de alcançá-los.
E se é verdade que a “arte imita a vida”, basta uma ligeira espiada na galeria de filmes vindos de lá para compreender, ou pelo menos tentar, o paranóico American way of life. Eu, que não morro de amores pelo cinemão hollywoodiano, já perdi as contas de quantas vezes, por exemplo, Nova Iorque foi dizimada nas telonas. Haja criatividade! Já vi de um tudo! Extraterrestre soltando raios, vilões intergalácticos cuspindo fogo, naves espaciais centrifugando homens e carros. Já vi a Big Appel virar pó nas mãos de terroristas árabes, sucumbir à força da natureza e ao poder invisível de vírus e pragas e pestes terríveis. Gostar, não gosto. Mas me divirto um bocado! Também, pudera! Eles exercitam a imaginação até os últimos limites da sanidade mental. E isso, em certos aspectos, reflete, sim, a paranóia coletiva instaurada naquele país.
Lá, naquelas terras do Norte, se o sujeito é gringo, usa barba farta e não tem o esmaecido tom de pele dos americanos, corre o risco de nem passar do aeroporto. Se passa, corre o risco de ser farejado até dar meia-volta. Se não volta, vive à espreita, como caça, escapando do Serviço de Imigração feito o Diabo foge da Cruz. A rigidez faz sentido, é claro, sobretudo depois que as famosas Torres Gêmeas foram impiedosamente riscadas do mapa. Mas faz sentido até certo ponto. A nós, primos pobres e levemente mais lúcidos, nos parece que o delírio crônico instalou-se naquele país e grassa numa naturalidade impressionante, a ponto, inclusive, de extrapolar fronteiras e vir bater aqui, em nossa porta.
Impossível não citar, como exemplo, a meteórica visita da Secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, à Cidade do São Salvador. Quem viu, de perto, o aparato montado para garantir a segurança da sempre sorridente Ms. Rice certamente se imaginou num set de cinema. Além de paranóicos, me pareceram extremamente exagerados nossos ilustríssimos visitantes. Num Centro Histórico repentinamente “higienizado”, sem meninos pedintes saltando nos pescoços nem lixo brotando de esquina em esquina, os agentes da polícia norte-americana desfilaram todo o seu poderio e arrogância. Óculos escuros e armas em punho, zanzaram para lá e para cá, inspecionando cada minúsculo espaço, cada buraco recôndito por onde passavam como se nós, logo nós, planejássemos o mais terrível dos ataques terroristas. Ora! Que ataque poderíamos urdir? E ainda mais no Pelourinho? Para quê cargas d’água iríamos nós atentar contra a vida da sempre “adocicada” Candy Rice? Ainda que tivéssemos ojeriza ao presidente a quem ela representa e aversão à sua política internacional do “guela-abaixo”, que submete países pobres e em desenvolvimento e solapa soberanias ao grau mais rasteiro, ainda assim não teríamos motivo que explicasse todo aquele pavor desembarcado. Só a paranóia norte-americana justifica, em síntese, o “circo” de língua estrangeira armado no Pelourinho.
E como se assistisse a mais um filme-paranóia, gozei de divertidos momentos acompanhando aquele elenco bizarro, de peles claras e paletós escuros, cozinhando nas ruas de pedras do Centro Histórico, embaixo de um generoso sol de meio-dia. Acostumados ao calor senegalês das manhãs de verão nesta terra da Bahia, pararam os baianos, em multidão curiosa, a espreitar, de perto e de longe, furando aqui e acolá o portentoso esquema de segurança, aquela inusitada movimentação de homens e mulheres excessivamente brancos. Para todos, ou pelo menos para a maioria, nada daquilo fazia muito sentido. No semblante de cada um, a expressão de estranhamento. Na lógica baiana, não havia razão para homens mirarem suas armas pesadas, no topo das igrejas seculares, em direção àqueles que só queimavam poucos minutos do tempo xeretando tão invulgar vai-e-vem. Não havia razão para carros apressados, escuros e blindados, cortarem em velocidade os becos, ladeiras e vielas seculares, com pencas de policiais pendurados, como se estivessem em exercício de guerra. Na lógica baiana, nossa, Condoleezza Rice ou a Rainha da Inglaterra, naquele momento, inspirariam a mesma curiosidade, a mesma admiração. Somente.
Por isso, depois de alguns breves minutos bisbilhotando aquele intenso movimento, um preto velho, lá para seus oitenta e tantos anos, engatou marcha ré e saiu tranqüilo, no manso passo baiano, subindo a ladeira como se tivesse toda a eternidade à sua disposição. Alheio à presença da Secretária Rice, delegada-maior do presidente Bush, o velho nagô ganhou seu rumo... Da mesma forma que a paranóia norte-americana ganhou o dela, horas depois, para nossa felicidade.

segunda-feira, 10 de março de 2008

EU E MEUS MEDOS


O que seria de mim, pobre sujeito, sem meus medos? E eles são tantos! Da infância, trago alguns na memória, herança de um passado distante, mas ainda vivo, ainda à flor da pele. Medo das sombras que, à noite, desenhavam-se à meia-luz do meu quarto. Medo do uivo do vento quando, insolente e curioso, invadia a fresta da porta, como a zombar de mim. Medos inocentes! Tantos! Medo de tirar sangue, de chegar atrasado à aula, de não acordar daquele sonho ruim.
Mas eles ficaram lá atrás. Os medos de hoje são concretos, sisudos, sérios. Os medos de agora me assustam mais. Muito mais. Perderam a inocência, a ingenuidade. Já não são inofensivos. Refletem, em verdade, algo que se perde, que se parte dentro de nós, num impreciso momento da nossa experiência. Que algo é esse? Difícil saber.
Meus medos, os de hoje, são forjados no dia-a-dia, nas necessidades mais imediatas, na lógica estúpida da vida moderna. Medos azeitados na emergência do ter, do acumular, do produzir sempre, mais e mais. Medos que derivam do ritmo nervoso, devorador, que imprimimos à nossa rotina. Quais são eles? Tantos! Medo do dinheiro que me pode faltar, do emprego que me pode ser negado, do alimento que pode ausentar-se da minha mesa. Medo do vizinho desconhecido, do passageiro do banco da frente, do estranho que vem adiante. Medo do outro. Seja lá quem for o outro. Medo de todas as sombras. Da minha própria, inclusive! É a “cultura do pavor”. É o desconfiar estabelecido.
De todos os medos, entretanto, um me apavora sobremaneira, ao ponto de tirar-me sono e sossego. Qual seja: o fim da sensibilidade. Tenho medo do embrutecimento que a falta dela pode germinar em nós todos. “A vida endurece o couro”, ouvi certa vez. Penso, cá com meus botões, que sujeitos endurecidos, embrutecidos, tornam-se sujeitos cegos, surdos, potencialmente perigosos. E do que somos capazes, quando endurecidos?
Dia desses, durante uma reportagem sobre a violência galopante no bairro de Santa Cruz, uma voz levantou-se da multidão que protestava por justiça. Dizia, em tom berrante: “Se é pra matar, que mate. Mas não inocentes!”. Referia-se à ação de grupos de extermínio na região. Não divisei se aquela voz partia de homem, mulher, criança ou idoso, todos eles ali concentrados. Um outro alguém, também anônimo, bradou: “Eles que procurem o alvo certo; não saiam atirando pra todos os lados”.
Naquele momento, naquele exato instante, meu medo veio à tona, apossou-se por inteiro. Temi por mim e por todos. E pensei no modelo de justiça que aqueles homens e mulheres exigem e merecem. Uma questão me formigou o juízo, atazanando minhas idéias até as tantas da noite: não há, aí, um contra-senso? Um paradoxo dos grandes? É possível admitir a existência de um grupo de extermínio, que julga, condena e executa um sujeito, seja ele culpado ou inocente, à margem da Lei ou de qualquer outra razão que não a de seus integrantes e, ao mesmo tempo, exigir que a Justiça se faça presente? Ou, em outras palavras: como posso, eu, compreender e até legitimar a ação de um grupo de extermínio, quando este julga, condena e executa “vagabundos” e “marginais” e, também, pleitear justiça, a “boa justiça”? Ora, existem duas justiças: a do vagabundo e a do homem honesto? A lógica do “dois pesos, duas medidas” se aplica?
Aqui reside, talvez, a essência do embrutecimento de que falava. Caminhamos, passos largos, em direção à cegueira coletiva, enevoada que está nossa capacidade de perceber a impossibilidade da existência, concomitante, da “justiça” dos bons e da justiça dos “maus”. Isso explica o medo que tenho do embrutecimento. Ele nos retira aquilo que temos de mais precioso: a sensibilidade. Insensíveis, não enxergamos o outro. E se o outro é a referência de que precisamos para nos reconhecer enquanto sujeitos, também não nos reconhecemos. E se não somos mais capazes de nos enxergar...
Queria ter de volta meus medos da infância. Medos inocentes, inofensivos! Tempo feliz aquele em que só o uivo do vento na fresta da porta me tirava o sono. Mas eles, os medos de outrora, deram lugar a outros, reais. Medos que se mostram por inteiro, perigosos e terrivelmente assustadores...

quarta-feira, 5 de março de 2008

SÁBIA CLARICE


Dona Clarice, minha avó, sussurrou certa vez: “Coração de gente, meu filho, é terra onde ninguém passeia”. As palavras da velha cabocla, ditas ao pé do ouvido, com a seriedade própria de uma confissão, me acompanham desde aquela ensolarada manhã de domingo, vinte anos atrás. À época, ainda menino, não alcancei a profundidade daquela frase e o quanto ela revela da nossa natureza. O tempo, porém, se encarregou dessa tarefa e hoje, ligeiramente maduro, pareço compreender o significado do que, até bem pouco tempo, me soava como um “código” a ser desvendado.
Levei o dia a pensar na velha Clarice, morta já há muitos anos. “O que diria ela, sábia cabocla, se tivesse visto aquela cena?”. Refiro-me à imagem do jovem José Mário, doente mental, acorrentado à cama e à janela de um cubículo mal acabado e sem ventilação, no quintal de uma casa, em Periperi, Subúrbio Ferroviário de Salvador. Hoje, enquanto gravava a reportagem, tentei imaginar quais seriam as palavras de minha avó quando soubesse que o rapaz, trancafiado há quase quatro meses, assim estava por “obra” do pai e do irmão. Talvez repetisse a frase. Talvez nada dissesse. O silêncio cortante, que raras vezes pude acompanhar naquele semblante de índia, talvez fosse a reação mais provável. Era assim, cerimoniosamente muda, que ela ficava quando entristecida.
Somos tão parecidos! Eu, se pudesse, teria me investido deste mesmo silêncio. Mas o ofício exige de qualquer jornalista um posicionamento mais ativo. Desta forma, ao lado de repórteres, cinegrafistas e fotógrafos, me vi “cercando” o jovem rapaz, na tentativa de “arrancar” dele um depoimento que explicasse aquela situação. Pensei, equivocadamente, que ouviria um desabafo emocionado ou palavras de acusação. Contrariando minhas tolas expectativas, José Mário não exibiu o menor sinal de revolta ou lançou acusações aos parentes. Limitou-se a “perdoar” o pai e o irmão, com a serenidade invejável de uma criança sem malícia.
“Coração de gente é terra onde ninguém passeia” – pensei novamente. A mais óbvia das reações, diante daquele quadro horroroso, era outra: indignação. Porém, como uma espécie de “soco no estômago”, José Mário, deficiente mental, me mostrou o outro lado da história. No primeiro instante busquei culpados. Mas quem eram os culpados? O pai e o irmão, pobres homens, subempregados, sem instrução? De quem era a responsabilidade? Daqueles que viviam às voltas com o rapaz, peregrinando de hospital em hospital, em busca de um que oferecesse atendimento psiquiátrico gratuito e integral? Mas e a sociedade? E o Estado? Onde estivemos nós todo esse tempo? Onde está nossa parcela de culpa na prisão, no cárcere e no sofrimento de José Mário?
O que pensaria Dona Clarice neste momento? Se estivesse aqui, talvez sentasse em seu colo magro, como há vinte anos, para ouvir-lhe as palavras, sábios ensinamentos de quem aprendeu com a vida a conhecer os mistérios do coração, essa terra onde ninguém passeia.

sábado, 1 de março de 2008

O BODE E A ÉTICA


Ave, bode!
Lá, no sertão onde nasci, ele é o rei. Sua Majestade impera nos tabuleiros e barrocas de Serrinha, campeando livre, lépido e serelepe entre pés de anjico e cajueiros. A corte real é numerosa: cabras, carneiros e ovelhas, sem falar nos cabritos e cabritinhas nervosos, que zaneiam pra lá e pra cá, devorando toda sorte de capim que encontram pela frente. Sempre tive um certo respeito por ele, o bode. Aqueles chifres tortos, a barbicha despencando do queixo, as orelhas compridas e os olhões amarelos, redondos, vidrados, me faziam pensar no porte real daquele bicho. Até o budum inspirava respeito. Por isso, nunca gostei da carne de bode. Mas os anos eram difíceis. O boi, pela hora da morte, só de caju em caju dava o ar da graça. A galinha de quintal tinha lá suas garantias. Afinal, do seu (do dela!) generoso fiofó, vinham os ovos para o cuscuz e a omelete. Lá, no sertão onde nasci, ninguém ousava rejeitar comida. Súdita ou majestosa, comida era sempre comida e, assim sendo, tínhamos que comê-la. E o cardápio não variava. Quase nunca variava! Mas a criatividade era farta. Na mesa, vi todas as possibilidades de bode imagináveis: frito no óleo, refogado com abóbora e batatas, desfiado e moqueado. Os miúdos viravam viuvinha, meninico, buchada. Um festival de iguarias à moda sertaneja. Imaginava já ter visto todas as combinações humanamente possíveis quando, há alguns dias, me deparo diante do que me pareceu surreal: "bode ao leite de côco". Não mais no sertão onde nasci, mas aqui, nestas terras da capital. E noutra situação: não diante da mesa, na hora do almoço, fechando os olhos para mordiscar os pedacinhos da carne assada, mas em frente à câmera, trabalhando. "Bode ao leite de côco", dizia minha pauta. E lá fui eu mostrar a receita, passo a passo, para uma reportagem sobre "pratos inusitados". Não preciso dizer que, naquele exato instante, me veio à lembrança os tempos do bode frito, ensopado, moqueado... Receita pronta, provei, meio nervoso. "O sabor é diferente. Vale a pena experimentar". Foi o que disse. Foi o que ousei dizer, apenas. Não gosto de bode e não gostei do prato. Sabendo disso, meus colegas de trabalho, ali presentes, me acusaram de não estar sendo "honesto" como meus telespectadores. "Ora, como não?" - bradei. "Fui e sou honesto. Estaria mentindo se tivesse dito que o prato é delicioso". Minha defesa, entretando, não os convenceu. Continuaram me "acusando" de ter "passado a idéia de que o bode é uma delícia". Em casa, como de costume, parei par refletir. Pensei, pensei, pensei. Eis que o bendito bode me lançou, de volta, à seara da relexão sobre ética no jornalismo. Arre! O que é ética? Recordei-me dos tempos de faculdade, das discussões intermináveis, dos calorosos embates sobre os limites da atividade jornalística e do papel político-social de cada um de nós, sujeitos da informação. Em casa, distante alguns anos desse debate, percebi, feliz da vida, que ainda estou atento a ele. E como não estaria? Ética não é verbete de dicionário Não se decora. Não está ao alcande da mão, no balcão da farmácia ou na prateleira do mercado. Ética descobre-se, entende-se. Concebe-se no árduo exercício da reflexão sobre a tarefa de noticiar, informar, respeitando o fato e o telespectador. Concluí que teria faltado com a ética se tivesse elogiado o bode ao leite de côco. O que não fiz. Faltar com a ética é faltar com a verdade. É ser desonesto. E lá no sertão onde nasci, bode é rei e verdade é sempre verdade.