quarta-feira, 5 de março de 2008

SÁBIA CLARICE


Dona Clarice, minha avó, sussurrou certa vez: “Coração de gente, meu filho, é terra onde ninguém passeia”. As palavras da velha cabocla, ditas ao pé do ouvido, com a seriedade própria de uma confissão, me acompanham desde aquela ensolarada manhã de domingo, vinte anos atrás. À época, ainda menino, não alcancei a profundidade daquela frase e o quanto ela revela da nossa natureza. O tempo, porém, se encarregou dessa tarefa e hoje, ligeiramente maduro, pareço compreender o significado do que, até bem pouco tempo, me soava como um “código” a ser desvendado.
Levei o dia a pensar na velha Clarice, morta já há muitos anos. “O que diria ela, sábia cabocla, se tivesse visto aquela cena?”. Refiro-me à imagem do jovem José Mário, doente mental, acorrentado à cama e à janela de um cubículo mal acabado e sem ventilação, no quintal de uma casa, em Periperi, Subúrbio Ferroviário de Salvador. Hoje, enquanto gravava a reportagem, tentei imaginar quais seriam as palavras de minha avó quando soubesse que o rapaz, trancafiado há quase quatro meses, assim estava por “obra” do pai e do irmão. Talvez repetisse a frase. Talvez nada dissesse. O silêncio cortante, que raras vezes pude acompanhar naquele semblante de índia, talvez fosse a reação mais provável. Era assim, cerimoniosamente muda, que ela ficava quando entristecida.
Somos tão parecidos! Eu, se pudesse, teria me investido deste mesmo silêncio. Mas o ofício exige de qualquer jornalista um posicionamento mais ativo. Desta forma, ao lado de repórteres, cinegrafistas e fotógrafos, me vi “cercando” o jovem rapaz, na tentativa de “arrancar” dele um depoimento que explicasse aquela situação. Pensei, equivocadamente, que ouviria um desabafo emocionado ou palavras de acusação. Contrariando minhas tolas expectativas, José Mário não exibiu o menor sinal de revolta ou lançou acusações aos parentes. Limitou-se a “perdoar” o pai e o irmão, com a serenidade invejável de uma criança sem malícia.
“Coração de gente é terra onde ninguém passeia” – pensei novamente. A mais óbvia das reações, diante daquele quadro horroroso, era outra: indignação. Porém, como uma espécie de “soco no estômago”, José Mário, deficiente mental, me mostrou o outro lado da história. No primeiro instante busquei culpados. Mas quem eram os culpados? O pai e o irmão, pobres homens, subempregados, sem instrução? De quem era a responsabilidade? Daqueles que viviam às voltas com o rapaz, peregrinando de hospital em hospital, em busca de um que oferecesse atendimento psiquiátrico gratuito e integral? Mas e a sociedade? E o Estado? Onde estivemos nós todo esse tempo? Onde está nossa parcela de culpa na prisão, no cárcere e no sofrimento de José Mário?
O que pensaria Dona Clarice neste momento? Se estivesse aqui, talvez sentasse em seu colo magro, como há vinte anos, para ouvir-lhe as palavras, sábios ensinamentos de quem aprendeu com a vida a conhecer os mistérios do coração, essa terra onde ninguém passeia.

19 Comentários:

Às 6 de março de 2008 às 03:40 , Blogger Ana Carolina Azevêdo disse...

Se eu já gostava de tu, tô ficando apaixonada.
ô facilidade pra escrever!
Quando eu crescer quero ser igualzinha a vc, rs.
Beijos

 
Às 6 de março de 2008 às 07:02 , Blogger Leonardo Daltro disse...

Difícil essa situação, isso mostra de quantas coisas precisamos ,o quanto sofremos por não ter um estado sério , ou melhor um pais, que realmente se preocupe com nossos direitos básico, moradia educação e nesse caso a saúde.Apesar de tudo os familiares também são reféns,o que faltou neles e o que falta nas pessoas hoje, um pouco mais de humanidade e ser mais família,a base de tudo

 
Às 6 de março de 2008 às 15:56 , Blogger Unknown disse...

Affff! Adorei...facilidade para escrever hein?
Muito legal vc escrever sobre temas que nos chamam atenção para um mundo q muitas vezes esquecemos...Me fez pensar mt sobre nós seres humanos e nossas fragilidades.

Parabéns!

 
Às 6 de março de 2008 às 16:00 , Blogger Emanuela Carvalho disse...

Ainda temos medo dos loucos.. E veja que, de perto, ninguém é normal! Qualquer pessoa q se mostre diferente do q julgamos ser "normal" deve ser escondida, acorrentada.. Assim, ficamos todos bem seguros e bem distantes.
Culpados somos todos, por não respeitar as diferenças e as limitações do outro e por achar, também, que tudo isso está muito distante de nós.
Ricardo, parabéns!!! Volto sempre :)

 
Às 6 de março de 2008 às 16:24 , Blogger Unknown disse...

vi essa reportagem e é interessante saber o que você pensava ao fazê-la. acho que estamos tão acostumados a ver um produto pronto que é 'diferente', pra não dizer 'estranho' entender o desenvolvimento desse processo. sábias palavras de Dona Clarice e parabéns pela sensibilidade!

 
Às 6 de março de 2008 às 16:27 , Blogger Agnus... disse...

É, como você mesmo disse, sábia Clarice... Parabéns pelo blog. ;-)

 
Às 6 de março de 2008 às 17:15 , Blogger Dan FM disse...

Seu texto é primoroso, Ricardo! Gostei muito de ler! Quando vi a matéria nos jornais, fiquei sensibilizado, mas suas palavras e o semblante de sua avó que me veio à mente, me emocionaram! Parabéns pelo blog! Vou virar assíduo, viu? Rs!

 
Às 6 de março de 2008 às 18:22 , Blogger Unknown disse...

Cara, vc é o cara! Muito bom o texto, vc escreve divinamente. O interessante disso tudo é que li ou ouvi esta semana, a mesma frase que sua avó dizia e ela povoou meus pensamentos por um tempo. Fiquei imaginando várias situações da minha vida que ela se aplicava. As pessoas estão nos surpreendendo a todo momento com suas atitudes. Abração

 
Às 6 de março de 2008 às 18:25 , Blogger Unknown disse...

Bom,amei como vc impõe as palavras neste texto maravilhoso,realmente coração de gente é terra onde ninguem pisa aprendi isso tbm como minha amada vó e com meus queridos pais... Sempre admirei vc desde a tv Sudoeste, excelente jornalista e aí na tv Bahia me surpreende a cada reportagem.
Parabens e continue escrevendo assim, pois prescisamos acordar pra ver o que esta acontecendo a nossa volta.
bjos

 
Às 6 de março de 2008 às 18:27 , Blogger Unknown disse...

Ol� Rick!
Gostaria de parabeniza-lo e confessar que me sinto orgulhosa, de ver o crescimento intelctual e pessoal de alguem que aprendi a admirar ainda na Universidade. Um amigo especial, que soube fazer bom uso de todas as dadivas de Deus!
Excelente seus textos, seus comentarios, inteligentes, intelectuais e de "dominio publico" melhor dizendo, onde todos t~em acesso, otima oportunidade para refletir e reavaliar conceitos. obrigada por este grandioso presente!
Sucesso sempre!
e saiba que aqui fica uma amiga que acompanha sua ascencao com prazer e que te devota prestigios!
beijos com carinho
Paty "bad_anjinha" - UESB

 
Às 7 de março de 2008 às 04:18 , Blogger Mariana Paiva disse...

Não sei não te amar mais lendo esse texto. Tudo em você só se torna sempre melhor.

É verdade, Rick. Também meu pai diz essas palavras, só trocando o verbo: "Coração dos outros é terra que ninguém passeia". Talvez seja o dito mais certo de todos mesmo.

:*

 
Às 7 de março de 2008 às 05:03 , Blogger Unknown disse...

Pois é, onde estamos nós que vemos esse mundo virar de cabeça pra baixo com extrema passividade? "O mundo está ao contrário e ninguém reparou"... Será? Façamos a nossa parte, antes que seja tarde. Rick, meu amigo. Ainda bem que blogou-se para nos presentiar com essas preciosidades. Sucesso!!! Bjocas

 
Às 7 de março de 2008 às 05:57 , Blogger Unknown disse...

Rico,
Ser sensível às vezes é cruel. E ser sensível e ser repórter...hum, difícil.
Situações como essa, nos fazem parar, por mais que apenas por instantes, e perceber que não somos nada além do que uma reprodução. Reprodução de pensamentos, quando que no primeiro momento quisemos apenas atacar – o pai e o irmão de José Mário; reprodução de comportamentos, quando sabemos que esta situação é real e deixamos que se passassem longos quatro meses para que uma providência fosse tomada; e reprodução de comportamento, quando a todo o momento vemos histórias semelhantes à do jovem José Mário e simplesmente nos consolamos fazendo aquela velha pergunta: “ que Brasil é esse?”.
Parabéns pelo posicionamento e que palavras como às de Dona Clarice divaguem por muito mais mentes e em menos situações como essa.
Abração!!

 
Às 7 de março de 2008 às 06:12 , Blogger Abará disse...

Silêncio...
Axé

 
Às 7 de março de 2008 às 07:16 , Blogger Unknown disse...

O "ofício", Ah... o "ofício", ele nos submente a tantos caminhos, tantos rumos jamais trilhados em seus projetos de vida! Ao senhor repórter o "ofício", ao personagem da história o "ofício", à sábia avó o "ofício"! Belo texto, exemplar avó, gostosa leitura (mesmo que seja diante de uma realidade tão cruél). Só quero fazer uma pergunta: Qual a possibilidade de disponibilizar na web esta matéria? - Abraço meu amigo do Pan Pan Pan.

 
Às 7 de março de 2008 às 08:54 , Blogger Emerson Sales disse...

É lamentavel nos depararmos com situações como esta, quantas vezes me questiono quando vejo situações semelhantes... tanta gente passando fome e sem condição de vida.
Em uma fase de minha vida, pude acompanhar de perto e miséria e a fome. E o q fazer? Cruzar os braços? Temos que fazer acontecer, temos que ser farol para um mundo perdido na escuridão.
Parabéns pelo texto, muito bom!

 
Às 7 de março de 2008 às 08:56 , Blogger Rafael Veloso disse...

Rick,

Parabéns pelo blog e pela sua sensibilidade nos textos. Sobre esse post, realmente figuras simples e sábias, nos mostram muitos outros lados de nossa vivencia.

Abçs,

Rafa
wwww.rafaelveloso.blogger.com.br

 
Às 9 de dezembro de 2011 às 07:56 , Blogger Duda da Bahia disse...

Este comentário foi removido pelo autor.

 
Às 9 de dezembro de 2011 às 08:00 , Blogger Duda da Bahia disse...

A cabocla iria dizer... Meus filhos. As senzalas que nos mantinham presos feitos bichos, ainda existem na nossa atualidade. E é por conta isso que ainda não somos libertos dos preconceitos, e dos preconceituosos. Que nos acorrentam por sermos pobres, loucos e miseráveis.

 

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