segunda-feira, 10 de março de 2008

EU E MEUS MEDOS


O que seria de mim, pobre sujeito, sem meus medos? E eles são tantos! Da infância, trago alguns na memória, herança de um passado distante, mas ainda vivo, ainda à flor da pele. Medo das sombras que, à noite, desenhavam-se à meia-luz do meu quarto. Medo do uivo do vento quando, insolente e curioso, invadia a fresta da porta, como a zombar de mim. Medos inocentes! Tantos! Medo de tirar sangue, de chegar atrasado à aula, de não acordar daquele sonho ruim.
Mas eles ficaram lá atrás. Os medos de hoje são concretos, sisudos, sérios. Os medos de agora me assustam mais. Muito mais. Perderam a inocência, a ingenuidade. Já não são inofensivos. Refletem, em verdade, algo que se perde, que se parte dentro de nós, num impreciso momento da nossa experiência. Que algo é esse? Difícil saber.
Meus medos, os de hoje, são forjados no dia-a-dia, nas necessidades mais imediatas, na lógica estúpida da vida moderna. Medos azeitados na emergência do ter, do acumular, do produzir sempre, mais e mais. Medos que derivam do ritmo nervoso, devorador, que imprimimos à nossa rotina. Quais são eles? Tantos! Medo do dinheiro que me pode faltar, do emprego que me pode ser negado, do alimento que pode ausentar-se da minha mesa. Medo do vizinho desconhecido, do passageiro do banco da frente, do estranho que vem adiante. Medo do outro. Seja lá quem for o outro. Medo de todas as sombras. Da minha própria, inclusive! É a “cultura do pavor”. É o desconfiar estabelecido.
De todos os medos, entretanto, um me apavora sobremaneira, ao ponto de tirar-me sono e sossego. Qual seja: o fim da sensibilidade. Tenho medo do embrutecimento que a falta dela pode germinar em nós todos. “A vida endurece o couro”, ouvi certa vez. Penso, cá com meus botões, que sujeitos endurecidos, embrutecidos, tornam-se sujeitos cegos, surdos, potencialmente perigosos. E do que somos capazes, quando endurecidos?
Dia desses, durante uma reportagem sobre a violência galopante no bairro de Santa Cruz, uma voz levantou-se da multidão que protestava por justiça. Dizia, em tom berrante: “Se é pra matar, que mate. Mas não inocentes!”. Referia-se à ação de grupos de extermínio na região. Não divisei se aquela voz partia de homem, mulher, criança ou idoso, todos eles ali concentrados. Um outro alguém, também anônimo, bradou: “Eles que procurem o alvo certo; não saiam atirando pra todos os lados”.
Naquele momento, naquele exato instante, meu medo veio à tona, apossou-se por inteiro. Temi por mim e por todos. E pensei no modelo de justiça que aqueles homens e mulheres exigem e merecem. Uma questão me formigou o juízo, atazanando minhas idéias até as tantas da noite: não há, aí, um contra-senso? Um paradoxo dos grandes? É possível admitir a existência de um grupo de extermínio, que julga, condena e executa um sujeito, seja ele culpado ou inocente, à margem da Lei ou de qualquer outra razão que não a de seus integrantes e, ao mesmo tempo, exigir que a Justiça se faça presente? Ou, em outras palavras: como posso, eu, compreender e até legitimar a ação de um grupo de extermínio, quando este julga, condena e executa “vagabundos” e “marginais” e, também, pleitear justiça, a “boa justiça”? Ora, existem duas justiças: a do vagabundo e a do homem honesto? A lógica do “dois pesos, duas medidas” se aplica?
Aqui reside, talvez, a essência do embrutecimento de que falava. Caminhamos, passos largos, em direção à cegueira coletiva, enevoada que está nossa capacidade de perceber a impossibilidade da existência, concomitante, da “justiça” dos bons e da justiça dos “maus”. Isso explica o medo que tenho do embrutecimento. Ele nos retira aquilo que temos de mais precioso: a sensibilidade. Insensíveis, não enxergamos o outro. E se o outro é a referência de que precisamos para nos reconhecer enquanto sujeitos, também não nos reconhecemos. E se não somos mais capazes de nos enxergar...
Queria ter de volta meus medos da infância. Medos inocentes, inofensivos! Tempo feliz aquele em que só o uivo do vento na fresta da porta me tirava o sono. Mas eles, os medos de outrora, deram lugar a outros, reais. Medos que se mostram por inteiro, perigosos e terrivelmente assustadores...

11 Comentários:

Às 10 de março de 2008 às 11:56 , Blogger Abará disse...

Parabéns Rick! Seus textos são deliciosos, leves e ao mesmo tempo com aquela pitada de inquietação! Quero um texto seu lá para Abará City!
Axé

 
Às 11 de março de 2008 às 12:33 , Blogger topinho de Nazaré das Farinhas-bahia disse...

oi meu anjo,
escolhi este, especialmente este pra comentar:medos
O medo, meu grande inimigo, que me tem impedido de fazer tanta coisa...medo que me vem da alma,aquele que nos impede de reagir àos ataques de outrem,de dizer o que é preciso dizer, pra não magoar, que nos impede a arriscar, a pular pro desconhecido.
va em frente, escrever é um bom exercicio de vida
bjos
celeste

 
Às 11 de março de 2008 às 13:03 , Blogger Ricardo Castro disse...

Também os tenho.

 
Às 11 de março de 2008 às 18:56 , Blogger Marcos Paulo Sales @ disse...

Ricardo,

Parabéns pelo blog... Muito legal mesmo!!! Quanto aos medos... quem não os têm, não é verdade? Somos tão carentes de tudo... Lendo a tua história agora, relembrei que estamos num caminho tortuoso, embrutecido e insensível, como você mesmo diz. Essa carência acaba criando um poder paralelo para "regular" as coisas, às vezes, da pior forma possível. Já os medos de infância, apesar de, quando os viviamos parecerem infinitos, são muito mais tranqüilos. Do outro lado, é como diz um velho amigo: "medo é o medo do medo de não ter medo de ter medo". rsrsrs. Ele acaba fazendo parte de nossas vidas...

Abraço,

 
Às 12 de março de 2008 às 05:03 , Blogger Unknown disse...

Rick,
Adorei o texto, uma leitura gostosa, que nos remete a nossa infância fazendo com que possamos lembrar de nossos medos inocentes que aos nossos olhos eram enormes e nos faz acordar no tempo atual, tempo este ao qual todos temos vários medos.
Então me veio à tona uma questão: Se não tivessemos medos, como seríamos?
Acredito que o medo nos remete a lutar, nos torna mais maduros, mais personalizados e com isso nos faz buscar várias soluções para tentar conquistar nossos espaços, ateingir nossas metas e viver nesse espaço.
O medo do estranho, do desconhecido é a penas uma das ferramentas que nos ajuda a construir nossa passagem por aqui.
Valeu amigo, muito bom se utexto.
Grande abraço
James Azevedo.

 
Às 12 de março de 2008 às 12:31 , Blogger Unknown disse...

Rick, por enquanto só to de passagem visitando. Mas em breve olho com mais atenção. Acho que em breve vou criar um tb. Um abraço.

 
Às 14 de março de 2008 às 13:36 , Blogger Amanda Julieta disse...

Este lado do Ricardo eu não conhecia... De querido jornalista, querida pessoa a também querido escrevedor!
Ricardito, seus textos são lindos, gostosos de se ler - e até me incentivam a não abandonar meu blog...
Vou adicionar nos meus favoritos!
Cheiro na alma!

 
Às 18 de março de 2008 às 11:56 , Blogger Linny Valenca disse...

dzstrsMeu lindoooo
Parabéns, amei seus textos...são maravilhosos...Conheci agora um lado seu que não conhecia...Parabéns também pelo seu blog, tah lindoooo...
Te adoro, viu?

 
Às 21 de março de 2008 às 14:17 , Blogger Dan FM disse...

Oi Ricardo. Eu gostaria muito de ter de volta os meus medos da infância, pois com certeza eles eram companheiros bem mais "amigáveis" do que esses medos de hoje, que tanto tiram meu sono. Hoje, eu luto contra as durezas da vida para não perder isso que você definiu com maestria: a sensibilidade. Seus textos são muito bons, a leitura é muito gostosa! Parabéns!

 
Às 23 de setembro de 2008 às 15:57 , Blogger Anderson Oliveira disse...

O medo que deixamos lá atras apesar de tão aterrorizantes não nos atingiam fisicamente com tanta arrogancia.
Tais grupos de exterminio tem integrantes do próprio poder policial, aí sim é um árduo paradoxo, pois a polícia mata inocentes, são aterrorizantes.
Nossa justiça é demorada e não pune os verdadeiros bandidos que está em toda parte de nossa sociedade.

Um abraço,

Parabéns !


Anderson
Vitória da Conquista
www.blogdoanderson.com

 
Às 10 de maio de 2009 às 15:59 , Blogger Janaira Barreiros disse...

Encantada com seus textos, pensamentos, enfim.
Também tenho muito medo que o mundo acabe insensível. Fico me perguntando, será que isso não é falta de amor? Acho que falta amor por nós mesmos, pelo outro, pela vida e por tudo que nos cerca.
O homem é o lobo do homem!!!! Thomas Hobbes.

 

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